Tuesday, March 06, 2007

O cabeludo e o video game da lanchonete.



Eu estava lá quando ele entrou a primeira vez na lanchonete. Ficava ali perto da rodoviária numa rua suja aonde os vagabundos vinham pra tomar pinga e os viajantes solitários paravam para comer salgados fritos em óleo velho e barato e tomar café que parecia ser coado em meias velhas e sujas. Os azulejos da parede antes brancos agora eram de uma cor indefinida de sujeira e gordura.
No canto havia uma mesa de sinuca e um video game de luta. Desses bem antigos, da época onde as crianças que não tinham dinheiro se enfileiravam pra jogar nos bares.
Ele chegou com seus cabelos longos e espalhafatosos e os olhos de um azul bem claro, quase da cor do céu. Comprou algumas fichas no balcão e foi para frente do videogame.
Colocou uma ficha e jogou. Demorou jogando, devia ser bom. Então outra. E depois outra e assim por diante. Passou horas em frente ao tal video game. Eu balançava meu copo de cerveja e permanecia sentado na cadeira de sempre, no canto de sempre. Então foi embora sem beber e comer nada, ao contrário da maioria das pessoas que freqüentavam o local.
No outro dia ao mesmo horário ele apareceu. Pediu o mesmo número de fichas, jogou por um pouco mais de tempo do dia anterior e foi embora. E no dia seguinte a mesma coisa, aumentando o tempo em relação ao dia anterior novamente. Devia estar se aperfeiçoando no tal jogo.
Depois de alguns dias dois dos outros freqüentadores diários foram perguntar o que tanto ele gostava no jogo de lutas. Ele simplesmente não respondeu. Seguiu para frente do video game e começou a jogar como sempre. Então perguntaram novamente e ele continuou jogando ao video game como se não fosse com ele. Os ogros ficaram bravos e foram tirar satisfações. Ofenderam o rapaz e sua mãe. Talvez até sua família inteira. Ele permaneceu estático jogando o video game. Os valentões não gostaram nem um pouco. Um deles acertou um soco no rosto do rapaz e o outro quebrou o copo de pinga na parte de trás de sua cabeça. O rapaz cambaleou pra frente e apoiou as mãos na tela do video game. Deu um olhar profundo com os claríssimos olhos azuis e permaneceu calado. Levou mais dois socos de cada um e caiu no chão, um pouco a frente de onde estava antes.
Os ogros riram para cima com suas bocas sujas e baforentas de álcool em sinal de diversão e então saíram e permaneceram no mesmo lugar de sempre no balcão, sem mais se importar com o pobre rapaz cabeludo. Parei de dar atenção ao episódio e voltei a minha cerveja, olhando o horizonte que me proporcionava a visão das centenas de pessoas que saiam e entravam na movimentada rodoviária. Até que um grande barulho chamou minha atenção.
O cabeludo de olhos claros havia quebrado uma das pesadas cadeiras de madeira do bar nas costas de um dos valentões que sangrava desmaiado no chão. Com um dos pés da cadeira quebrada golpeava o outro na nuca incessantemente. As pessoas da lanchonete assistiam a cena boquiabertas. Inclusive este que vos fala.
Não demorou muito e os antes ogros agoram eram mansos indivíduos desmaiados e ensangüentados no chão da lanchonete. O barrigudo e grisalho dono da espelunca arrastou-os até o outro lado da rua e os deixou desmaiados por lá mesmo. O cabeludo tirou um maço de notas do bolso, colocou no balcão e disse: - “Rodada completa pra todos por minha conta. E cinco fichas de videogame, por favor.”

Thursday, March 01, 2007

Dor de corno.



Parou na porta do bar mas não quis entrar. Tirou o maço de cigarros amassado do bolso e colocou um na boca. Na mão direita carregava um cantil desses de whiskye. Passou a mão pelos cabelos grisalhos e coçou a barba mal feita na cara arrasada. Chegou até mim e pediu fogo.
- Só tenho fósforos companheiro.
- Serve. retrucou.
Passei a caixa pra mão dele. Tirou um palito e acendeu o cigarro. Estendi a mão e ele me devolveu a caixa. Abriu o cantil e ao inves de tomar despejou pelo chão aos seus pés. Bem na estreita porta do bar. Eu só acompanhava os movimentos do velho homem. Deve ser algum tipo de louco da cidade, pensei.
Deu mais umas tragadas no cigarro e assoprou a fumaça. Olhou pra mim e disse um "obrigado" fraco e baixo, quase ináudivel. Deixou o cigarro cair ao chão e o fogo se alastrou pela porta do estabelecimento. Pulei a labarada de aproximadamente trinta centimetros que crescia rapidamente e corri em direção ao telefone público pra ligar pros bombeiros. Olhei de canto de olho e o desgraçado já tinha sumido pelas ruas estreitas do bairro.
Os bombeiros chegaram e controlaram a situação. Muitas ambulâncias se amontoaram em frente ao pequeno bar. Pobres bebuns.
Fui pra casa e fiz um café forte pensando em porque aquele maluco havia queimado a porta do bar e porque eu havia emprestado os fósforos. Deitei na cama e dormi pensando no que faria se tivesse alcançado o indivíduo.
No outro dia acordei cedo. Calcei os chinelos e sai para comprar pães e mortadela. Voltei e sentei no sofá para comer um pão e ler as notícias do dia. No canto direito inferior da capa estava a matéria que chamou minha atenção. "Marido traído ateia fogo em bar onde estavam mulher e amante, dez feridos incluindo o casal".
"Nunca mais empresto fogo pra ninguém". Gritei em voz alta enquanto preparava outro sanduíche de mortadela.

Saturday, February 17, 2007

Coquetel do fim do mundo.


Eu andava num tédio danado nos últimos meses. Fazia um tempo que eu só estava tomando vinho barato e assistindo aos notíciarios na Tv.
Saia pela rua vez ou outra pra comprar cigarros e abastecer meu estoque de vinho e uma vez por mês a sede da Assistência pra pegar a grana do meu seguro-trabalho para deficientes. Não que eu fosse um, mas nada que um bom dinheiro não compre um atestado assinado.
Não gostava dessa nova juventude. Eles ficavam por ai bagunçando nas ruas e fazendo coisas inuteis. Aonde é que essa porra de país vai parar, eu pensava.
Ficavam naquela porcaria de escada da igreja fumando seus bagulhos e mechendo com quem passasse. Eu estava louco pra que algum daqueles delinquentes mechesse comigo em algum dia em que eu não estivesse bom pra mete-lo uma boa surra e faze-lo rolar escada abaixo. Mas acho que eles temiam meu olhar de bêbado psicótico. Melhor assim.
Certo dia o telefone tocou. Fazia tempo que ninguem me ligava. Até demorei a atender.
- Pronto.
- John? John Buzziani?
- É. Que porra você quer me vender?
- Não, não é isso John. É que sou...
- Não vou votar em ninguem seu maldito. Esqueça.
- Também não é isso. Sou Marc Gilbest. Trabalhamos juntos na repartição em 1986.
- Ah sim. Claro que lembro. A gente costumava tomar umas cervejas junto né?
- Isso. Mas to ligando pra te convidar pra uma festa minha.
- Festa do que? Você ta fazendo aniversário é?
- Não, não é isso John. Eu escrevi um livro e vou dar um coquetel de lançamento.
- Livro de contos eróticos ou esses romances de empregada?
- Não. É um livro sobre uma teoria do fim do universo.
- Se é coquetel tem bebida certo?
- Sim. Mas o intuito da reunião é debater sobre o livro e como sei que você também se agradava a escrever....
- Beleza. To dentro.
Me falou o horário e ficou um tempo agradacendo até desligar. Cara chato do caramba. Pelo menos ia ter bebida. Mas eu esqueci de perguntar que porra de roupa ia ter que usar nesse negócio. Que se foda. Vou com aquele terno velho mesmo, e não to afim de lavar.
Matei o resto da minha garrafa de vinho e cai de sono no sofá.
Passei o resto do dia assistindo aquelas porcarias de novelas mexicanas até chegar a hora do tal coquetel. Tomei um banho como eu não tomava a tempos. Bem tomado mesmo. Dos pés a cabeça. As bebidas vão compensar. Eu espero.
Fiz a barba e coloquei o terno velho e amarrotado. É John, até que pra um trintão acabado você está bem hoje. Peguei o metrô e desci na estação perto do tal lugar. Numa ruazinha deserta, um lugar mal iluminado e com seguranças bem pagos a frente. Falei meu nome e sobrenome e entrei.
Um monte de intelectuais metidos a besta ao redor. Alguns me olhavam com desprezo, provavelmente pelo terno. Que se fodam esses malditos lambe-sacos do Einstein.
Umas mulheres charmosas com vestidos sexys e uma mesa de frios enorme. Tá legal, frios são gostosos mas eu queria mesmo saber da porra da bebida. Olhei pro balcão e lá estava um senhor colocando garrafas de whiskye na bandeja do outro garçom mais jovem que saia distribuindo pelo recinto.
Cheguei firme no balcão e tirei minha dose. Olhei pro lado e o tal do Marc estava vindo conversar comigo. Agradeci o chato pelo convite e ele começou a falar sobre a idéia do livro, e sobre sua teoria e em volta de nós começaram a se amontoar intelectuais com suas esposas em vestidos sexys enquanto eu não conseguia entender nada daquela conversa sobre uma teoria de surgimento e fim do universo e abordava o garçon dose após dose.
Já pelas tantas olhei em volta e vi os safados ainda em estado primário de bebedeira. Parece que esses inteligentões filhas da mãe não ficam bêbados. Ou não bebem. Aquele de óculos e terno azul está rodando o mesmo copo de whiskye com gelo a quase uma hora. Eles que se fodam, se não bebem bebo eu.
Numa dessas abordagens ao garçom o desgraçado não me viu. Ou fingiu que não viu. Passou reto eu fui atrás. Não ia ficar de copo vazio num lugar onde era tudo de graça.
Passei um grupo de moças discutindo receitas de peru para as festas de fim ano e vi o garçon contornar do lado esquerdo da mesa de frios. Apertei o passo torto e passei firme do lado da mesa. Só deu pra sentir algo enroscado na minha perna. Mas não dava tempo de parar, eu precisava pegar a minha dose com esse crápula. O tempo de um estalo e um fisgão na minha calça velha do terno e olhar pra trás e ver todos aqueles rosbifes, salames, peitos de peru, queijos suiços, cebolas em conserva, carpacios, pratos de porcenala, thaleres de prata voando no ar e num doloroso espetaculo gastronomico cairem nas cabeças, vestidos, sapatos de camurça e decotes das senhoras que discutiam sobre os perus.
Do outro lado da mesa os ternos italianos de linho e os cabelos milimetricamente repartidos esbaldados pelos molhos das conservas e pedaços de frios. O chão era praticamente uma mistura de cores e temperos. O tal do Marc me olhava atravessado, e o resto da festa também. Era eu ou eles.
Alcancei o garçon e puxei a garrafa quase cheia de whiskye. Corri deslizando pelos frios e molhos até a porta. Passei correndo pelos seguranças mal encarados e bem pagos que ainda não deviam nem imaginar o que se passava lá dentro da convenção sobre o surgimento ou fim do mundo.
Alcancei o primeiro ônibus que passava no ponto em diagonal a boate sem nem ao menos ver o destino. Entrei e sentei ao fundo abraçado com minha garrafa de whiskye. Agora é só eu e você querida. Nada de fim do universo ou frios.

Monday, February 12, 2007

Barracas e utilidades.



Andou uns passos da rua. Passou por um homem de terno e gravata e cara séria. Parou uns segundos, pensou e voltou.
-Ei, Antônio? Tony?
O homem olhou pra ele por alguns segundos, sorriu e falou:
-Mário?
Abraçaram-se por um longo tempo. Grandes amigos que se encontravam depois de quase trinta anos. Agora os dois já tinham mais de cinquenta e não vinte e poucos como nas épocas de ouro.
Decidiram tomar um café, relembrar os velhos tempos. Mário recusou o café e pediu uma cerveja.
-Então o que você tem feito seu engravatado?
-Virei gerente de banco. Coisa séria. Sou casado e pai de família. E você continua o mesmo?
-Ahn, digamos que sim. Nesses trinta anos basicamente as únicas coisas que eu fiz foram beber e ler os jornais de esportes.
-Resumindo que você continua o mesmo então.
Gargalhadas soaram pelo ar.
-E ai Tony, e aqueles poemas e contos que você fazia e eu me amarrava. Como é que ficaram?
-Sabe como é companheiro, parei no tempo. Alguns ainda devem estar na minha velha gaveta. Mas não pratiquei mais. E você ainda na ativa?
-Como sempre. Ainda na antiga maquina de escrever.
-Aquela do sorteio do bar do Seu Zé em julho de 1976?
-A própria, em ferro e poeira. Você sempre foi bom com datas seu velho.
-Olha quem fala de mim. Cinquenta anos com carinha de setenta.
Mais risadas ecoaram pela pequena padaria.
-Tony seu maldito engravatado. Essa coisa de café é pra banqueiros veados. Vamos tomar cerveja.
-É bancários Mário. Seu ignorante, mesmo lendo tanto nesse teu eterno ócio você não aprende?
Mas já que é por um bom amigo eu aceito a cerveja. Confeso que pensei bastante em você nesses tempos.
-Desce mais uma garçonete. Eu tambem pensei em você seu safado. Lembrando de todas aquelas trapalhadas dos vinte e poucos anos.
-Nem me fale. Bons tempos.
-Ótimos tempos.
-Lembra o acampamento no Rj onde a gente dormiu com as cinco menininhas hippies e no último dia foi assaltado?
-Claro que sim. Os malditos ladrões ainda deixaram um dos baseados com a gente.
-E a vez em que você bebeu tanto e inventou de arrumar briga com o desgraçado do Plínio no bar.
-E a gente teve que derrubar ele e os amigos dele com garrafas a torto e direita?
-A gente não, eu ia derrubando eles e defendendo você. Foram uns dez.
-É Tony. Naquela época você era um garotão bem forte. E não se metia nesses ternos ai.
-O meu espirito ainda é o mesmo. Seu induzidor de menininhas.
-Bem eu que fiz a filha do pastor virar uma profissional da noite né? hahahaha
Pagaram a conta e sairam pelas ruas. Pararam no primeiro brechó e compraram roupas das antigas pra Tony. Que se livrou do terno de grife italiana por alguns trocados e pra beber mais algumas cervejas.
Já muito bêbados decidiram o destino dali pra frente. Queriam uma vida tranquila. Tony se demitiu. Mário tomou jeito na vida.
Abriram com o capital de Tony e as idéias de Mário uma loja de roupas, bebidas, mochilas, barracas e utilidades.

É chato beber sozinho.


E aqui estou eu. Caído entre as garrafas de vermut e vinho barato na antiga mesa, da casa mais antiga ainda. E você sabe, na vitrola aquele bom e velho disco dos stones que a gente costumava ouvir.
Por isso eu estou aqui digitando coisas sem sentido na maquina de escrever, que se duvidar é mais antiga que a mesa porem menos antiga que a casa. E que casa. Um casarão.
Triste, velho e abandonado. Desde que você me abandonou, é claro.
Sempre achei ele grande pra nós dóis. Não precisavamos de quatro quartos, três salas, cozinha gigante, aréa de serviço do tamanho de uma lavanderia e um quintal capaz de abrigar muitas festas. E quantas nós não demos. Eu sei que você sempre reclamava de todos os meus amigos drogados, e os bêbados, e os malucos, e os escritores mais malucos, e os jornalistas marxistas revolucionários que se isolavam num canto discutindo o futuro e passado país, e os maconheiros espalhando a fumaça que eu sei que você odeia pela casa, e todas aquelas namoradas e acompanhantes deles que você teimava em achar que iam se jogar em cima de mim sem motivo aparente. Ah, e agora eles não estão nem perto. E muito menos você. Agora é só eu e o Joey latindo por ai. Ele tambem tem sentido a sua falta. E como.
Acho que o aluguel vai vencer. Mas eu não vou sair pra pagar. O máximo que eu tenho conseguido me deslocar é até a mercearia da esquina pra comprar os vermuts e vinhos baratos e quentes. As vezes quando sobra dinheiro algumas cervejas também.
A imobiliária fica no mínimo dez quadras de distância, e o banco a doze, e a lotérica a umas quinze. E eu não tenho forças pra abrir a porta e andar por ai.
Acho que ainda não te contei que estou sem luz também. É, eles cortaram semana passada. To tomando banho frio e bebendo vinho quente. Pelo menos a comida eu não sinto mais o gosto, mas deve estar estragada também. Não é nada parecido com aquele macarrão que você fazia. Nem com o seu feijãozinho preto. Mas até que tem me mantido firme em frente a máquina de escrever. Só ouvindo o tec, tec, tec das teclas o dia inteiro.
Fui tentar ligar pra sua mãe de novo pra ver se ela sabe por onde você anda mas cortaram o telefone também. Agora se pegar fogo na casa eu não posso ligar nem pros bombeiros.
Lembra aquele seu vinil do ABBA que eu odiava? Pois é. Me desculpa por ele. Quebrei num acesso de raiva, acho que os cacos ainda tão espalhados por aqui. Mas se você voltar eu juro que compro um novo, e paro de rodar aquele dos Ramones vinte e quatro horas por dia.
Eu to com aquela cara de presidiario que você diz que odeia. Sabe como é, não faço a barba a um bom tempo já.
Ouvi uns amigos comentando que to fedendo a bebida e em profunda decadência. Alguns tavam apostando que eu não durava um mês até cair numa clínica ou manicômio. Hahaha, idiotas. Eles devem achar que eu sou algum tipo de fracassado estúpido. E eu vou provar que estão todos errados. Eu e você meu amor.
Eu não me importo que agora você tem um buraco na cabeça. Eu realmente não me importo se teus miolos estão espalhados pelo chão de algum lugar. Pra mim você ainda é minha princesa.
Eles querem que eu te esqueça e procure outra pra viver. Mas você sabe que eu jamais vou fazer isso. Eu vou ficar aqui te esperando ouvindo o nosso disco dos Beatles e a nossa música preferida. Aposto que você lembra né? In my life.
O Joey ta bem triste ultimamente. Ele fica aqui mordendo a barra da minha calça enquanto eu escrevo provavelmente pedindo comida. Mas eu não tenho muita animação pra levantar da cadeira. Exceto pra comprar bebida. Vez ou outra jogo um pouco do meu almoço sem gosto pra ele. Parece que ele gosta, porque come bem rápido. Ao contrário daquelas raçoes ordinárias com gosto de peixe podre. As vezes também jogo um pouco de vinho ou cerveja pra ele também.
É chato beber sozinho. E você sabe como.

Thursday, December 28, 2006

Twist and Shout


Desde pequena ela gostava de dançar, mas o négocio dela era mesmo o shout. Já tinha feito ballet, jazz, sapateado, lambada, forró, samba, axé, tango e salão. Mas o negocio dela era mesmo o shout, o rock e os bailes. Era disso que ela gostava.
Se pegava dançando sozinha em casa ao som de antigos vinis de seu pai as músicas que agitaram os anos cinquenta e sessenta. Pouca coisa dos setenta, mas se agradasse ela dançava.
Nos bailes era a mais disputada pra dançar com os garotos. Era bonita, não chegava a ser linda mas agradava os garotos com sua simpaticidade e principalmente com o requebrado. Botava a valer e fazia todos dançarem o bom e velho rock'n'roll, não tinha erro.
Namorou alguns caras mas como quis o destino se apaixonou um dia. Numa fila de supermercado ele puxou um assunto sobre um tipo de macarrão que ela estava comprando e que descobriu que ele entendia e cozinhava muito bem.
Sairam juntos, e terminaram por namorar. O único problema era que ele não gostava de dançar.
Não tinha ciumes de ver ela dançar com os outros, mas simplesmente não gostava. Ela por contrapartida se sentia mal em dançar com outros e o ver sozinho nas mesas se embriagando.
Decidiu parar de dançar, mesmo contra sua vontade não ia mais aos bailes e não requebrava e agitava como antes. Tudo pelo amor.
Quis o destino que casassem. Linda festa, muitos convidados, alguns da gloriosa época dos bailes e quando passadas as cerimonias e formalidades a festa começou e todos se esbaldaram e botaram pra quebrar na pista ela não aguentou. Puxou o marido pela mão e seguiu até o meio da pista, dançaram um clássico do Roberto Carlos e sentiu as pernas travadas do marido.
Logo ele voltou para a mesa, o baile continou e a banda parou e chamou o casal ao centro.
Pediram aos dois para dançarem uma dança juntos, ela já não se aguentava de felicidade, ia finalmente dançar pra valer com o homem que amava. Ele suava frio e tentava achar formas inuteis de escapar da atenção de todos convidados presentes no recinto.
Ela pediu um Elvis e a banda atendeu. Começou o agito e percebeu que o marido continuava imóvel, tentou mais um pouco e desistiu. Virou de lado e dançou com o primeiro que apareceu.
Se descabelou e arrasou, depois de muito cansada procurou pelos cantos o festejado noivo.
O burburinho percorreu a festa e logo todos procuravam pelo coadjuvante da festança. Reviraram e desistiram, ele havia ido embora sem avisar ninguem.
Ela ficou triste por alguns minutos, a festa parecia caminhar para um trágico fim quando um companheiro dos antigos tempos de baile gritou de longe para soltarem o som. Ela pensou e se entregou, dançou e se divertiu a valer. Teve certeza que dançar o twist era a coisa mais importante e divertida da sua vida.
Voltaram a se ver apenas no tribunal de pequenas causas para assinar o divórcio. Ele já acompanhado por outra garota bonita e segundo ela constatou sem o minimo jeito e gosto pela dança. Ela apressada para se arrumar para mais um dos bailes de arromba.

O melhor sanduíche do mundo.



Há 20 anos morava no mesmo apartamento do centro, pegava os mesmos caminhos e comia sanduiche no mesmo lugar. Não que fosse o melhor sanduiche da cidade, para outros era apenas mais um lanche como outro qualquer. Mas pra ele não.
Era sem dúvidas o melhor sanduiche do mundo e provavelmente comeria para sempre.
A lanchonete de vidros sujos e mesas redondas antigas, chão quadriculado e quadros de Elvis Presley, Chuck Berry, James Dean e Marylin Monroe espalhados pela parede. Uma jukebox velha e um pouco quebrada mas ainda em bom estado de funcionamento no canto.
De dia um lugar para se tomar milkshake e comer um inigualavel sanduiche. De noite uma discoteca embalada onde as músicas dos anos 50 agitava os jovens da cidade entre cervejas, cigarros e paqueras.
Sentava-se e pedia o mesmo de sempre, sabia o nome da garçonete e de todos os funcionários e o mesmo acontecia em troca. Não demorava mais que meia hora comendo seu sanduiche e tomando seu milkshake, pagava, agradecia e saia tomando o mesmo caminho de volta para casa.
Um dia deu de portas fechadas, pensou ser estranho por conhecer os horários de funcionamento de-cor e salteado. A placa na frente dizia fechado por motivo de luto, conformou-se ficar sem o sanduiche e recorreu a algumas sobras da geladeira, ainda intrigado com a placa na frente da lanchonete.
Alguns dias depois entrou no mesmo lugar e fez o mesmo pedido. Percebeu que o sorriso no rosto da garçonete e dos outros funcionários não era o mesmo, pareciam um tanto cabisbaixo.
Comeu o sanduiche e abriu os olhos. Tomou dois goles do milkshake e deu outra mordida pra se certificar. Estava certo, não era a mesma coisa de sempre. Faltava algo ou havia algo a mais no tradicional sanduiche.
Chamou a garçonete e questionou alguma mudança na receita, a qual simplesmente negou e afirmou ter exatamente os mesmos ingredientes de sempre.
Intrigado se levantou para ir ao banheiro e observou a janela que dava na cozinha, olhou atento e percebeu que era o auxiliar de cozinha que agora fazia os sanduiches.
Sentou no seu lugar e indagou respeitosamente a garçonete quem havia falecido para o motivo de luto. A nóticia lhe causou um choque, ficou quieto por uns minutos e apenas disse umas palavras de conforto a colega de profissão.
Nunca fora muito intimo do cozinheiro, apenas cumprimentos formais e elogios ao sanduiche. Mas agora sua falta pesava em sua consciencia. O cozinheiro havia partido dessa para melhor e fatalmente seu sanduiche tinha ido junto. Pediu a conta, pagou e se despediu.
Nunca mais voltou a lanchonete. Passou o resto dos seus dias tentando a cada janta acertar a fórmula do sanduiche, sem obter sucesso.

Chevette prata reluzente.


Não via graça em carros, tampouco entendia de modelos e preços do mercado, mas aquele Chevette prata 1989 era especial.
Lembrava-se com orgulho do dia que depois de muito trabalho na época como acessor de escritório e com uma ajuda de sua falecida mãe entraria numa das garagens da área popular de compra, troca e venda de carros da cidade.
Entrou e andou em volta, olhou para cada carro e viu o carro prata reluzente lá no canto.
Andou e pediu para olhar, o fato de já vir com um toca-fitas ajudou bastante, conferiu o estofado já usado a quase dois anos e decidiu, aquele seria seu carro.
Discutiu os preços com o vendedor e estabeleceu um négocio amigavel, pagou-lhe na hora com um cheque orgulhoso de seu suor.
Os primeiros Quilometros foram indescriptiveis. Deu voltas, mecheu em todos acessórios, descobriu todas funções e utilidades, visitou amigos e mostrou para seus pais.
Deslizava pela cidade com uma fita velha dos Rolling Stones no rádio, cantarolava as músicas alto e segurava a direção firme. Sentia que aquele era seu carro e as rodas apontavam firmes para todo movimento de sua mão.
O tempo passou e as finanças melhoraram. Se formou em direito e abriu uma empresa especializada em processos trabalhistas. Ganhou dinheiro possivel para comprar muitos novos carros do ano, e todos o questionavam para trocar, mas não abria mão sequer um minuto.
O chevette era sua paixão e ia continuar com ele para muito tempo.
Viu as coisas piorarem relativamente. Primeiro algumas vendas, depois algumas demissões, logo a falencia e seu desespero. O carro teria que ser vendido para sanar dívidas de aluguel da antiga sede da empresa.
Desesperou-se com a idéia que cada vez tomava mais sentido, os únicos bens que lhe restavam foram o apartamento de classe médio em aréa nobre da cidade e o carro. Ficar sem casa ou sem carro, a indecisão doia a cada dia em sua cabeça.
Chegou o dia decretado de pagar, era coisa grande, judicial. Ou ele pagava em uma semana ou ia ter o nome sujo e bens confiscados. Vendeu o apartamento e sumiu.
Simplesmente entrou no carro, ligou o motor e colocou a mesma fita velha dos Rolling Stones. Dirijiu e desapareceu entre o horizonte da estrada que levava a divisa com outros dois estados. Só deu tempo de ver o prata reluzente brilhando e sumindo la na frente.