Thursday, March 08, 2007

João sem sal.


Já fazia um tempo que João achava que o mundo não tinha mais jeito ultimamente. Acordava todo dia e tomava o café lendo o jornal sobre as desgraças do dia. Trabalhava o dia inteiro e quando voltava pra casa a noite jantava péssimas comidas congeladas sem sal e assistia as desgraças no jornal da noite da televisão. Já tinha tempo que ele não se divertia. Mulheres então nem pensar. Só trabalhava o dia inteiro pra pegar o dinheiro no final do mês e pagar as contas e sustentar os poucos luxos como a tevê a cabo e alguns discos em vinil de sua época de jovem dos quais nunca tinha tempo para escutar e que provavelmente ficariam acumulando pó no solitário apartamento de dois cômodos. Passava o trajeto do ônibus olhando a cidade pela janela e se lamentando por não ser como aquelas pessoas normais que conseguiam ter vidas legais. Do tipo freqüentar bares e restaurantes, ler livros interessantes e ver filmes no cinema só pra ter o que conversar. João não tinha absolutamente nada pra conversar e qualquer pessoa que se aproximasse ia achá-lo alguém muito monótono. Por isso também não tinha amigos. Até seu nome era sem graça, pensava.
A única pessoa que via com freqüência era sua mãe uma vez a cada duas ou três semanas. Não conseguia agüentar os sermões dela sobre sua vida. Mesmo a comida dela sendo muito boa tudo aquilo não compensava.Valia mais a pena ficar com os congelados sem sal. Preferia a companhia de seu cachorro são Bernardo Mário e dar umas voltas nos quarteirões ao redor pra ver um pouco do pôr do sol deprimente. Depois chegava em casa e tomava um café bem forte com um gosto não muito agradável pelo velho coador de pano. Comia umas bolachas água e sal e assistia um pouco das desgraças no jornal da televisão. Então ia dormir e sonhar com uma vida legal pensando que em algum canto da cidade pessoas interessantes deviam estar se divertindo e fazendo coisas interessantes e bacanas. A vida de João era um marasmo.
Até o dia em que foi incomodado enquanto almoçava num restaurante de classe-média próximo a empresa onde trabalhava. Uma garota sozinha como ele sentada na mesa ao lado. Era jovem e vestia roupas atraentes. João achou ela muito bonita. Olhou pra ela por alguns segundos até ter sua atenção chamada de novo:
- Você poderia emprestar o sal pra mim? disse ela.
- Sa-sal?
- É o sal. Esse pó branco nesse vidrinho ai na sua mesa. Ela riu e provocou risos de canto da boca em João também. Ele passou o sal e voltou a comer. Ela interrompeu: -
Você sempre almoça aqui sozinho assim?
- S-si-sim...e-e você?
- É...hmm, geralmente sim.
Suas mãos tremiam. Tirando a zeladora de seu prédio essa era a única mulher que puxava algum assunto com João. As vezes era educação. Ela não ia gostar de alguem como eu, pensou.
- Quer sentar na minha mesa? Convidou a garota.
Aproximadamente trinta segundos depois João conseguiu desferir as palavras de confirmação. Almoçaram e conversaram sobre coisas em comum Nos dias seguintes voltaram a almoçar juntos no mesmo restaurante. E depois sairam pra jantar. E depois juntos na cama. E depois começaram a namorar.
Viraram noivos e moraram juntos. Tomavam café forte e comiam bolachas de água e sal todas as tardes.
Ela adorava cozinhar, e fazia tudo com muito sal. Fato que João adorava duplamente por não ter mais que comprar comidas congeladas e por poder sentir o gosto de sal que fora privado de seu paladar a tanto tempo. Massas, frituras, grelhados e assados. Tudo regado a muito sal. E nos churrascos de final de semana na cobertura do prédio carne mal passada com muito sal grosso.
Viveram felizes e bem alimentados até o dia em que ela encontrou João morto em sua cama. A autópsia registrou que ele havia morrido de uma crise de hipertensão. O motivo - excesso de sal.

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